Carlos Holbein Antunes de Menezes

Quando comecei a escrever para revistas, em abril de 2000, fiz-me duas perguntas: o que pretendo com essas crônicas? E a quem eu quero me dirigir?

Na verdade, eu demorei um bom tempo para descobrir as respostas, porquanto eram muitas! Precisei, por exemplo, atingir 74 anos de idade e estar feliz com isso. Ter alcançado 35 anos numa vitoriosa carreira no magistério, onde aprendi bem mais do que ensinei. Talvez, também tenha sido necessário consumar dois casamentos maravilhosos, muito embora sentisse falta do filho que só veio no terceiro casamento… Ainda bem! No entanto, a maior razão para eu escrever é acreditar que tenha algo a dizer para alguém. Sem o quê, convenhamos, nada disso teria sentido!

No fundo, eu creio que o que me move na direção da literatura é a grande oportunidade de fazer as minhas ‘expiações’. Tão somente! Ou seja, enfiar a mão na ‘caixa-preta’ da memória afetiva e retirar de lá o que puder… e souber. Desse modo, ao revisitar antigos episódios, quem sabe eu possa renovar os laços que estão no presente?! O mais importante é convidar o leitor a fazer uma longa “viagem” comigo.

Quando me disponho a escrever, fico imaginando que há nesse “mundo mundo vasto mundo”* alguém que deseja se identificar nas minhas histórias. E dizer: eu também sinto isso! Ou, então, quem sabe, eu apenas queira ouvir de alguém: você me tocou! Seria sinal de que o texto valera a pena!

Nas minhas crônicas há um aspecto bem marcado: opto sempre pela primeira pessoa do singular. Porquanto é mais íntimo e convidativo. Com isso, quebra-se o constrangimento, estabelece-se a tácita cumplicidade e o ‘rapto’ é concedido afinal.

As crônicas pretendem desencadear no leitor alguns desejos. De modo óbvio, o de “embarcar” na história. E logo a seguir, o de refletir sobre o “em volta” dela. Isso porque, as crônicas raramente falam sobre o cinema ou o jazz de forma direta. Muito ao contrário, são os filmes e os discos que pegam carona no texto, como pano de fundo. Ou alavanca.

Os artigos são destinados a um público ávido por informações: às criaturas que ao fazerem uso de uma leitura rápida e instigante possam ter um entretenimento agradável. Como professor, sei bem que a pior coisa que uma pessoa gosta de ouvir é: “você não entende disso”. Sendo assim, sempre tive o cuidado de não ferir ninguém ou me mostrar arrogante. Até porque, convenhamos: o conhecimento é algo para ser repartido, socializado e difundido.  E, sempre que possível, sem cerimônias!

O escritor tem a obrigação de seduzir o leitor. Primeiro para que o leia. Depois, para que tome gosto pela leitura. Mas, acima de tudo, para que se sinta tentado a prosseguir nesse maravilhoso caminho.

Um grande abraço a todos e boa diversão!

(*Carlos Drummond de Andrade: “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo  mundo vasto mundo, / mais vasto é o meu coração.”)

ÁLBUM DE FAMÍLIA

Eu bem sei que essa história parecerá estranha, até mesmo absurda. Verdade é que tudo ocorreu de forma muito rápida e ‘explosiva’. Aliás, até hoje eu não consegui digerir completamente a sequência dos episódios. Por isso, então, vou apelar para a ajuda de vocês, amigos leitores. Rogo apenas para que sejam benevolentes comigo.

O ‘causo’ começou a partir de uma conversa com uma amiga psicanalista. Deixe-me contar o episódio. Mas, por favor, somente depois me digam se eu ‘viajei’ ou não na “maionese’…

A primeira frase que ela pronunciou foi bombástica: “Acredite no que vou dizer, Carlos: família é algo maravilhoso. Porém, creia-me, apenas em um álbum de fotografia!”

Céus, confesso que fiquei encafifado… afinal, eu não sabia o que argumentar ou contrapor. O certo, minha gente, é que naquele momento eu aceitaria qualquer sugestão… menos o silêncio devastador que tomou conta de mim! “E agora, o que posso dizer?” – pensei inquieto.

Muito embora eu não seja mineiro e sim cearense, preferi não falar nada. Apenas balancei a cabeça, como se meditasse sobre a frase. Profundamente. Por sinal, eis aí uma boa dica: sempre que você não se sentir seguro para dar a réplica em uma acalorada discussão, opte pelo silêncio. Juro que funciona! Ao menos, deixamos o interlocutor ‘ensimesmado’ e ganhamos algum tempo para nos recompor… e eu bem carecia… Ufa!

Mas, o diabo é que ela não parou por aí. Quando eu já comemorava o ‘armistício’ da conversa, imaginando mudar de assunto, ela soltou mais um torpedo. Enfaticamente, disse: “O certo é que só a orfandade desenvolve plenamente a criatura. O que é preciso, Carlos, é poder viver essa condição, independente da ‘existência’ dos pais e irmãos. Segundo ela, é preciso “cultivar a individualização e, por conseguinte, permitir que as grandes diferenças possam aflorar nas relações da família. Sem medos ou hipocrisias. Pois só assim, evita-se o acúmulo de mágoas… já que estas, sim, são perigosas e nefastas”.

A amiga psicanalista ainda disse outras coisas. Mas, na altura do campeonato, ah, eu já não conseguia ouvir mais nada direito. Estava atônito e, ao mesmo tempo, incrédulo. No fundo, talvez eu já estivesse até em pânico…

O melhor a fazer era ir para casa após aquele jantar, que nem conseguia descer direito. Pudera! Quem afirmara tudo aquilo era uma conceituada terapeuta lacaniana, extremamente preparada. Uma criatura que possui uma bagagem cultural e emocional de fazer inveja!

“Será que ela tem razão?” – pensei com os meus botões. Isto porque, convenhamos, até aquele momento eu seria capaz de apostar na beleza da família, na importância da união dos ‘entes queridos’, essas coisas… Sabe como é? O fato é que a minha postura sempre fora de ‘guardião’ da família. Paciência!

Aí, surgiu uma inusitada voz, vinda não sei de onde. Parecia até coisa do ‘demônio’: “Dá um tempo, Carlos! Você não fala com seu irmão mais velho há três anos! Isso sem contabilizar o distanciamento estabelecido com os outros…” Céus, é verdade! Ah, mas vai ver que é pelo fato dele ser uma pessoa difícil. Insuportável, até! Já com os outros é di-fe-ren… Hum, será?! Ou mais uma vez eu não quero enxergar a realidade?

O que sei dizer é que pela primeira vez na vida eu senti insônia. Juro. Só vendo o sufoco que passei. Rolava de um lado para o outro na cama e nada dos pensamentos darem trégua.
“A única solução é ‘encarar’ a questão”, pensei com convicção. E aí, comecei a me dar conta de que a amiga psicanalista não estava equivocada. Porquanto a minha família não é lá ‘um exemplo de união’. Apesar de sermos muitos, verdade é que poucos se relacionam bem. Suportamo-nos, isso sim! Talvez, por conta de uma herança cultural que nos empurrava a manter as aparências. Na realidade, somente agora percebo, fomos unidos apenas na infância, que criança é muito pura e não se queixa de nada mesmo. Vocês já viram, por acaso, criança apontar os grandes defeitos dos pais?!

Então, resolvi deixar o assunto de lado. “Melhor assim. Essas ‘coisas’ só devem ser tratadas quando nos encontramos bem, sem nenhum estresse”. E, seguramente, não era o meu caso! Por isso, eu preferi espairecer e dar um pulinho na banca de jornal para ver as novidades. Acabei batendo os olhos nesse filme, “Parente… É serpente”, do fabuloso Mario Monicelli. “Ah, comédia! É tudo que necessito neste momento!” – suspirei aliviado.

No entanto, como costuma dizer a minha irmã: “Não adianta insistir aqui ou acolá, Carlinhos. Basta deixar por conta do universo. E ele, sabiamente, se encarrega de conspirar e pôr as coisas na ordem certa”. Meu Deus, quanta sabedoria!

Assim, comecei a assistir ao filme, deliciando-me com a impecável condução de Monicelli e o belo desempenho dos atores.
Pois é. Um filme fabuloso, isso sim. Que originalidade! Que incrível ‘humor negro’! Mas, ao mesmo tempo, cá entre nós: que hora mais inoportuna! Pois eu nem havia absorvido a conversa com a amiga psicanalista e, ironicamente, fui ‘fulminado’ pelo cáustico humor da história. Por mais que eu tentasse disfarçar, soltando inúmeras gargalhadas ao longo da comédia, percebia que não sairia ileso até o final do filme. É que o diretor, sabiamente, armou uma tremenda cilada para os espectadores, já que da metade da história em diante fica evidente a intenção dele. No fundo, é fácil intuir o final do filme, muito embora não acreditemos que ele, o diretor, tenha coragem de fazer ‘aquilo’… Ah, ele não será capaz disso, pensei perplexo durante a cena da ‘reunião’ dos irmãos para tratar do ‘destino’ dos pais. Quase desliguei a TV!

Olha, minha gente, já foi dito, por aí, que a arte imita a vida. O que eu não sabia, juro a vocês, é que a vida também imita a arte… Quanta ironia!

Somente agora eu posso falar sobre o episódio, pois consegui me libertar do “Lexotan”, após seis meses de intensa terapia. É bem verdade que, no início, tive muitas dificuldades. Só eu sei! Para que vocês tenham uma ideia do aperto: mudei-me de cidade, arrumei um novo emprego, terminei o antigo casamento e, durante um bom tempo, frequentei a “Igreja Arca da Fé”. De fato, tornei-me outra criatura. Feliz? Bem… aí, eu não saberia dizer. O importante é que fiquei aliviado: sem culpas ou remorsos. Mas, não foi nada fácil, creiam-me.

O processo penal ainda está em tramitação, que essas coisas levam muitos anos para serem julgadas. A capitania dos portos ainda não terminou o laudo do acidente do barco. Virgílio, meu advogado, garante que eu sairei vitorioso. Segundo ele diz: “ninguém conseguirá provar nada, Carlos. Há somente suspeitas. Algo sem consistência. No fundo, foi um lamentável acidente: apenas isso!”

Porém, junto à família a questão arrastou-se por um longo e sofrido tempo. Agora, tudo indica que os irmãos já absorveram o ‘trauma’ e, lentamente, ensaiam uma aproximação. Conseguimos até celebrar o aniversário do irmão caçula, no último dia 15, sem que pairasse no ar aquele clima pesado das outras vezes.

Intimamente, devo confessar, tem sido prazeroso rever os irmãos e resgatar antigas lembranças da infância. Eu, meu irmão mais velho e a irmã do meio planejamos, inclusive, uma viagem à nossa terra natal. Iremos rever os parentes e desencaixotar, enfim, as últimas ‘tralhas’ retidas no inconsciente familiar. Como bem recomendou a amiga psicanalista!

Se eu ainda frequentasse aquela igreja, certamente diria: “aleluia, irmãos, aleluia!”

O QUE A MEMÓRIA AMA, FICA ETERNO Adélia Prado

Eu peço licença aos meus amigos e leitores para publicar um texto que não é meu. No entanto, eu me sinto tremendamente representado em cada linha a seguir… Coisa linda!

O QUE A MEMÓRIA AMA, FICA ETERNO – Adélia Prado

Quando eu era pequena, não entendia o choro solto da minha mãe ao assistir a um filme, ouvir uma música ou ler um livro. O que eu não sabia é que minha mãe não chorava pelas coisas visíveis. Ela chorava pela eternidade que vivia dentro dela e que eu, na minha meninice, era incapaz de compreender. O tempo passou e hoje me emociono diante das mesmas coisas, tocada por pequenos milagres do cotidiano.

É que a memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos. Crianças têm o tempo a seu favor e a memória ainda é muito recente. Para elas, um filme é só um filme; uma melodia, só uma melodia. Ignoram o quanto a infância é impregnada de eternidade.

Diante do tempo envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são crianças, nossos amigos estão perto, nossos pais ainda vivem.

Quanto mais vivemos, mais eternidades criamos dentro da gente. Quando nos damos conta, nossos baús secretos – porque a memória é dada a segredos – estão recheados daquilo que amamos, do que deixou saudade, do que doeu além da conta, do que permaneceu além do tempo.

A capacidade de se emocionar vem daí: quando nossos compartimentos são escancarados de alguma maneira. Um dia você liga o rádio do carro e toca uma música qualquer, ninguém nota, mas aquela música já fez parte de você – foi o fundo musical de um amor, ou a trilha sonora de uma fossa – e mesmo que tenham se passado anos, sua memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações; alguma parte de você volta no tempo e lembra aquela pessoa, aquele momento, àquela época…

Amigos verdadeiros têm a capacidade de se eternizar dentro da gente. É comum ver amigos da juventude se reencontrando depois de anos – já adultos ou até idosos – e voltando a se comportar como adolescentes bobos e imaturos. Encontros de turma são especiais por isso, resgatam as pessoas que fomos, garotos cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debilóides, como éramos há 20 ou 30 anos. Descobrimos que o tempo não passa para a memória. Ela eterniza amigos, brincadeiras, apelidos… mesmo que por fora restem cabelos brancos, artroses e rugas.

A memória não permite que sejamos adultos perto de nossos pais. Nem eles percebem que crescemos. Seremos sempre “as crianças”, não importa se já temos 30, 40 ou 50 anos. Para eles a lembrança da casa cheia, das brigas entre irmãos, das estórias contadas ao cair da noite… ainda são muito recentes, pois a memória amou, e aquilo se eternizou.

Por isso é tão difícil despedir-se de um amor ou alguém especial que por algum motivo deixou de fazer parte de nossas vidas. Dizem que o tempo cura tudo, mas não é simples assim. Ele acalma os sentidos, apara as arestas, coloca um band-aid na dor. Mas aquilo que amamos tem vocação para emergir das profundezas, romper os cadeados e assombrar de vez em quando. Somos a soma de nossos afetos, e aquilo que amamos pode ser facilmente reativado por novos gatilhos: somos traídos pelo enredo de um filme, uma música antiga, um lugar especial.

Do mesmo modo, somos memórias vivas na vida de nossos filhos, cônjuges, ex-amores, amigos, irmãos. E mesmo que o tempo nos leve daqui, seremos eternamente lembrados por aqueles que um dia nos amaram.

  • Magistral interpretação de Nelson Freitas.

UM MUNDO PREOCUPANTE

A sentença quase sempre era a mesma: “você errou aqui e acolá. Um absurdo!” Depois disso, a verdade é que raramente as coisas costumavam tomar outro rumo. Pior ainda: quando mudava, nem sempre era pra melhor. Afinal de contas, ter um dedo em riste apontado em nossa direção, céus, isso é algo constrangedor. Humilhante. Porquanto o gesto intimida qualquer criatura.

O que eu posso dizer é que Gustavo era um sujeito tímido, de poucas palavras. Em pequenos ambientes, ele até conseguia se comunicar com os outros. No entanto, bastava o grupo aumentar em número ou em posturas exibicionistas, aí, minha gente, Gustavo se enterrava no primeiro buraco que via. Feito um avestruz…

Para ele, a primeira solução era se esconder, até porque “quem não é visto, não é lembrado”. E Gustavo se esmerava nesse ditado, convenhamos. Fosse para buscar o ‘lado escuro’ que existe em todo grupo, fosse para sair de fininho, “à francesa”, como diziam os especialistas em comportamento humano.

De um jeito ou de outro, o certo é que os ‘estragos se acumulavam’ sucessivamente. E Gustavo demonstrava sentir os golpes da vida. De tal maneira, que quase não víamos mais ele pelas redondezas do bairro. Preferia viver sozinho, sempre recolhido. E olha que eu era o amigo mais próximo dele . Mesmo assim, eu percebia que ele também me evitava. Ora mudando o lado da calçada, ora descendo as escadas do prédio para evitar encontros indesejáveis.

O diabo é que essas coisas só tendem a aumentar. Lamentavelmente. A partir daí, surgem as críticas e perseguições. Até mesmo acusações infundadas. Se observarmos ao redor, veremos que o número de ‘grupos minoritários’ tem aumentado assustadoramente nos últimos tempos. Quem sabe não seja por conta da intolerância que vemos em tantas criaturas ou seitas? Sim! Nós estamos vivendo tempos difíceis, minha gente. Tempos covardes e até violentos. E isso assusta bastante!

Eu não sei dizer qual foi o destino de Gustavo, pois me mudei de cidade e estado e nunca mais soube dele. Algumas vezes, eu perguntei aos amigos comuns sobre o paradeiro dele. Ninguém soube responder ou sequer teve interesse no destino do nosso amigo. Preocupado, eu torço apenas para que ele não tenha sucumbido ao impiedoso coletivo humano. Esse, ah, nós já conhecemos bem: é costumeiramente cruel e intolerante com qualquer tipo diferente. Aliás, sempre tomam o ‘diferente’ como um suposto oponente…

LONGE DESSE INSENSATO MUNDO…

Esta semana eu visitei um grande amigo para montar o sistema de áudio e vídeo que ele adquiriu. E como todo entusiasta por filmes e esportes, ele partiu para uma grande TV, de 50 polegadas. Porém, temeroso de cometer uma daquelas ‘gafes tecnológicas’, Gérson me pediu socorro por saber da intimidade que tenho com as recentes tecnologias.

Empunhando o agradável dever com o amigo, preparei um kit ‘primeiros socorros’, ou seja, cabo HDMI, cabo ótico, cabos RCA e um punhado de adaptadores para as mais variadas interligações. Ufa! Eu parecia até aquele ‘caça fantasma’ do filme, lembram?!

Chegando lá no aconchegante apartamento do Gérson, guardei o kit sobre a mesa e demos início a longa prosa do dia. É que Gérson é um excelente interlocutor, com conhecimentos em inúmeros campos culturais. Por isso, é prazeroso o papo com ele, pois domina diversos temas e possui um apurado senso de humor, o que torna a conversa mais amena e instigante.

No entanto, o dever nos chamava. E com os cabos ao redor do pescoço, fui efetuando as conexões necessárias. Não, sem antes, escutar algumas provocações feitas por ele. “Carlos, com a ajuda do VAR, ficou bem mais fácil o serviço do Flamengo, não acha?” Pois é. Como todo vascaíno fanático, eu já aguardava essas instigadas. Por isso, fiz ouvidos moucos…

Terminado o serviço, fomos aos testes. E Gérson, muito metódico, pegou um bloquinho de anotações e começou a escrever o passo a passo do controle remoto. Como ligar a TV e regular o volume e os canais. Como acessar o “pendrive” com os filmes ou como fazer uso do “player” de bluray ou DVD. Enfim, tudo anotado e ensaiado algumas vezes.

Saindo da casa do amigo Gérson, eu enfrentei um trânsito pesado, o que me fez levar mais de 50 minutos até a minha casa. Com isso, conectei o meu ‘smartphone’ ao som do carro e pus as músicas prediletas para tocar. Por sorte, comecei sendo brindado pelo sopro suave e intimista de Miles Davis, no maravilhoso álbum que serviu de trilha sonora para o filme de Louis Malle, “Ascenseur pour L’échafaud”. Céus, que maravilhosa interpretação Miles conseguiu nos presentear na faixa “L’assassinat de Carala”. Afinal, o clima “noir” que ele desenvolve no tema é profundamente propício para o enredo do filme. Coisa de gênio, meus amigos!!

Daí, como eu já estava relaxado e nem ligava mais para o engarrafamento do trânsito, fui catapultado para lembranças da minha mocidade. Sim, Miles Davis provoca tudo isso! Sendo assim, eu acabei me recordando das dificuldades enfrentadas no primeiro emprego, bem como a escolha do magistério como profissão a ser assumida. Ah, foram tempos difíceis, é verdade. E muita adrenalina eu queimei até conseguir o meu lugar ao sol.

Então, embalado pelo inebriante trompete que, lentamente, foi entorpecendo os meus pensamentos, acabei desaguando nas preocupações típicas de um pai. É que o meu filho Gabriel está atravessando esses mares inquietos. Por ser recém-formado, ele ainda não conseguiu um emprego no ramo escolhido e foi trabalhar em algo bem distante da profissão desejada. Penso que será uma busca demorada. Pior ainda: ela requisitará muita obstinação e paciência até alcançar os objetivos dele.

Como pai, eu acabo sofrendo por tabela, torcendo para que ‘dias melhores’ apareçam e possam atenuar as dores do crescimento dele. É somente o que me resta.

No mais, quem sabe, eu possa sugerir que ele também ouça Miles Davis. Com sorte, talvez ele possa permitir ao coração pulsar no mesmo ritmo do sopro de Miles, como acontece em “Julien dans l’ascenseur”: aquele ritmo forte e angustiante, drenando o seu coração…

https://www.youtube.com/watch?v=Wc4tT-55ZzI

PAPAI FEZ CEM ANOS



Vocês já pensaram o que é viver cem anos? Pois eu, confesso: nem consigo imaginar, muito embora esteja próximo de completar setenta e cinco. “Mas ainda está distante, Carlos, bem distante”, dirão alguns. Então, o que é preciso fazer para chegar lá? Vejamos:

Por certo, não basta apenas eu herdar o DNA. Sim, é verdade. Porquanto me falta muita estrada a percorrer. Muitas pessoas e lugares a conhecer. Talvez, seja preciso um pouco mais de lucidez e disciplina. Quem sabe uma pitada a mais de fantasia?! E a busca por melhores causas, será que conta?

Ah, meus amigos, uma coisa eu posso assegurar a vocês: se as pernas não fraquejarem e a mente não perder o foco, juro que vou perseguir essa marca do meu pai. Vou me esforçar ao máximo para chegar lá! Aliás, empurrado por Ednardo, o conterrâneo talentoso, muito cedo eu ouvi o seu hino: “Eu venho das dunas brancas / onde eu queria ficar / deitando os olhos cansados / por onde a vida alcançar…” Porém, foi daí que surgiu o questionamento: que vida é essa que eu ainda quero alcançar?! E o que dela ainda posso almejar?

Sei não. Na verdade, houve um tempo em que escutei bastante Bob Dylan. E foi ele que  me assegurou, em “Blowin’ In The Wind”, que eu teria “as respostas sopradas pelos ventos”. Sim! Segundo ele, isso ocorreria somente após compreender “quantas estradas um homem deve percorrer pra poder ser chamado de homem?” (“How many roads must a man walk down  / Before you call him a man?”)

Depois disso, o mundo girou mais um bocado. Mesmo assim, Ednardo insistia em me lembrar: “Eu tenho a mão que aperreia / Eu tenho o sol e areia / Sou da América, sul da América / South America / Eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia / Eu sou do Ceará.” Isso porque, também é verdade que nenhuma busca poderá ser bem-sucedida se não compreendermos de onde viemos…

Portanto, apesar das dúvidas que o mundo impõe, eu continuo seguindo em frente. Cada vez mais desapegado das ‘tralhas’ que carreguei até aqui. Ainda que pesadas, não percebi que eram desnecessárias. E algumas, talvez, fossem até indesejadas! “…No escuro dessa noite me ajuda a cantar / Derrama essas faíscas, despeja esse trovão / Desmancha isso tudo que não é certo não.” Afinal, sempre é tempo de aprender!

Agora, para ser justo, eu reconheço que dei muita sorte nessa vida. Ah, lá isso sim! Sorte por ter encontrado boas parcerias e com elas ter estabelecido pactos que me salvaram. Além disso, foram essas criaturas que, ao atravessaram o meu caminho, deixaram marcas permanentes em minha alma… Coisa linda! “Tudo é mistério nesse teu voar / Ai, se eu corresse assim / Tantos céus assim / Muita história eu tinha pra contar…”

O que sei dizer é que não tivesse eu encontrado o amor e com ele germinado um lindo filho, talvez esse percurso fosse bem mais difícil. Porém, novamente fui presenteado. Por conta disso, eu consigo reunir essa vontade de pelejar em busca dessa marca que meu pai alcançou. Oxalá, daqui há trinta anos eu possa cantar: “Meu céu é pleno de paz / Sem chaminés ou fumaça / No peito enganos mil / Na terra é pleno abril / No peito enganos mil / Na terra é pleno abril…”

Contudo, se algum desvio houver nesse trajeto, se não for possível chegar lá, creiam-me, não haverá dores ou arrependimentos. Somente a certeza de que valeu a pena a trajetória. Para o meu filho, quem sabe, deixarei um desafio para encarar. E para a minha mulher, meu grande amor, eu cantarei em voz alta, orgulhoso: “Não temas minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / Eles são muitos, mas não podem voar!” 

BAILA COMIGO

Na minha juventude, em quase todos os fins de semana havia algum baile programado pelo empreendedor Ari Mustafá. E existia também uma enorme variedade de orquestras e clubes onde ocorriam essas festas. Pudera! Aquela foi uma época de ouro, de muita efervescência musical para nós, jovens mancebos na faixa dos 15 aos 25 anos de idade.

No entanto, eu precisava organizar muitas coisas, uma vez que meus pais não tinham grandes recursos financeiros. Afinal, eram tempos difíceis para bancar roupas, ingressos e tudo o mais que era consumido pela rapaziada tijucana no Rio de Janeiro dos anos 1960 e 1970. Então, para dar conta disso, ah, eu tinha que pôr em ação várias estratégias. A primeira delas, era propor um plano de pagamento parcelado ao alfaiate do bairro, o seu Horácio. Para tanto, combinamos que eu ficaria encarregado de entregar as encomendas dos clientes. Então, eu andava por todo lado, feito um “motoboy”, só que sem moto! Algumas vezes, eu tinha que subir o morro do São Carlos para levar uma calça, um paletó ou mesmo uma fantasia de carnaval. Com isso, a cada entrega efetuada, eu promovia descontos na minha ‘conta corrente’ com o seu Horácio. É o tal negócio: só assim eu acumulava a graninha da calça ‘boca-de-sino’ para me ‘exibir’ nos bailes do Ed Lincoln ou da Orquestra Tabajara.

Outra estratégia que eu lançava mão era carregar as sacolas das feiras das senhoras do prédio. Porquanto elas gostavam dos meus “serviços”, uma vez que eu era bastante gentil e educado com elas. E a feira da rua Sampaio Ferraz, que ocorria em todas as quartas, rendeu-me um bom dinheirinho por alguns anos. Em certas quartas-feiras, eu fazia aquele percurso três ou quatro vezes para levantar uma grana. Mas ficava com as mãos vermelhas de tanto peso… Dureza braba!

Lembro até que eu havia pressionado o alfaiate para me entregar a calça “pied-de-poule” que tinha encomendado. Só que o sacana do seu Horácio ‘morcegava’ um bocado, alegando que estava com muitas encomendas para aquela semana. O jeito foi dar uma ‘incerta’ no atelier de costura dele, no sobrado da Quintino do Vale. Com a desculpa de pegar as encomendas das entregas, eu acabei vislumbrando a minha calça na mesa ao lado. Uau… “que tal levar a minha calça”, pensei com meus botões?!

Tudo a ver, já que naquela sexta-feira haveria o baile do Ed Lincoln, no clube Orfeão Portugal. Para isso, eu me preparei feito um príncipe, pois até xampu eu usei no banho. Além disso, peguei o vidro de Lancaster do meu irmão mais velho e sacudi em cima. Sem pena!

O que eu sei é que a calça entrou um pouco apertada. Abotoei o cinto estilo “tremendão”, calcei a bota e me mandei de casa antes que me perguntassem aonde eu ia. Ao chegar no clube, a fila de entrada já estava enorme, com muita gente bonita, sorrindo à vontade. Foi quando eu apresentei o ingresso e subi as escadarias que davam acesso ao grande salão. “Hoje é o meu dia”, pensei exultante. Peguei um copo de cuba-libre e adentrei no ‘campo da batalha’. Orgulho puro no peito!

Foi quando eu ouvi os primeiros acordes de “Só danço samba”, de Vinícius e Tom Jobim. Foi um verdadeiro delírio para a rapaziada que aguardava a abertura do salão de dança. Rapidamente eu procurei uma moça bonita para ser meu par. E tinha uma lourinha bem ao lado da mesa central. “Aceita dançar”, perguntei todo garboso. Sim, aceito, ela respondeu. Peguei a sua mão e caminhamos para o ‘palco das grandes exibições’.

Como aquela melodia sacudiu o ambiente, eu achei que podia encerrar a música com um passe bem expressivo. Virei a moça de lado e apliquei uma descida com certo malabarismo. Foi quando ouvi aquele barulho de roupa rasgando… No primeiro momento, pensei que podia ter vindo de outra pessoa. Qual o quê! Era a minha calça que havia descosturado de ponta a ponta na parte traseira. Sem graça, agradeci a lourinha e fui saindo de fininho do salão.

Ao chegar no banheiro, descobri que a calça tinha uma costura provisória, cheio de pontas de linha espalhadas para dentro. No reservado, tirei a calça e vi uma anotação feita com lápis de cera: “Carlos – só alinhavada”. Maldito seu Horácio!

OS CAMINHOS DO CORAÇÃO

Dizem que o melhor aliado do homem é a memória, porquanto é o único patrimônio verdadeiramente intransferível. Tudo o mais é efêmero e não redime o coração de quem quer que seja. Concordo. Plenamente!

Muitas vezes, observa-se que o destino de uma criatura sofre bruscas mudanças e subverte os caminhos do coração. Ainda que seja injusto, convenhamos, são incontáveis os casos em que a ‘roda da vida’ manipulou os acontecimentos. Seja atropelando sentimentos, seja cerceando talentos ou mesmo modificando o rumo de algumas histórias. Vimos isso, por exemplo, no brilhante filme de Claude Lelouch, Bolero (Les uns et les autres), em que saga de quatro gerações é dramaticamente interrompida. O título do filme, dado aqui no Brasil, bem que apontava: Retratos da vida. Sim, meus amigos, são os impiedosos fragmentos do cotidiano. E o que se percebe é que o destino continua, teimosamente, impedindo que outros tantos caminhos possam ser revelados.

Sabemos que o ser humano é detentor de fortes contradições e que a sua busca por uma vida melhor nem sempre logrou êxito. Mário Quintana, o nosso encantado poeta, declarou um dia: “Ah! se exigirem documentos aí do ‘Outro Lado’, extintas as outras memórias, só poderei mostrar-lhes as folhas soltas de um álbum de imagens: aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado ou uma nuvem perdida, perdida… Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!”

Pois é. Eu também tenho me perguntado: que fotografias levarei desta vida? Que histórias terei para contar ainda desse lado? Isso porque o percurso da gente é tão repleto de causos que, no fim das contas, o que nos cabe mesmo é ser bons contadores de histórias. Apenas isso!

Bem, eu não posso dizer se terei sucesso ou não, uma vez que ainda estou plantando os acontecimentos. O certo é que tenho procurado, ao menos, não deixar que as fotografias adquiram um insípido amarelado e se desgarrem do meu álbum. Se eu conseguir isso, meus amigos, já será uma vitória…

Contudo, não é lá uma tarefa muito fácil. Isto porque as nossas emoções estão presentes e, ironicamente, acabam dificultando o processo. Por sorte, Fernando Pessoa nos deixou um importante legado: “…nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. / O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado / porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. / Procuro despir-me do que aprendi, / procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos.”

De fato, eu devo reconhecer que o meu olhar, ultimamente, tem se voltado muito para o porão da memória. Justifico: é que de lá eu venho extraindo lembranças e lições do que já vivi. Tentando, com isso, dar mais significado aos inúmeros episódios e, em última análise, sentido a vida!

Sei também que em diversas ocasiões eu agi como na canção: “…dei pra sonhar / fiz tantos desvarios / rompi com o mundo / queimei meus navios”. Mas, tudo bem… Faz parte do jogo da vida. Afinal, são os esconderijos da memória. São os nossos sonhos brincando no labirinto. Daí, então, eu reafirmar: que maravilha é viver! Mesmo que o amor, por vezes, se desencontre, ainda assim ele sempre será bem acolhido. Mesmo que a mulher amada proclame sem piedade que “na bagunça do teu coração / meu sangue errou de veia e se perdeu…” – eu continuarei acreditando que o afeto mora ao lado.

O que sei é que se a gente pudesse incorporar um pouco mais o que as músicas dizem, ah!, como seria bom… Por certo, elas nos diriam com orgulho: “Se eu pudesse por um dia / esse amor, essa alegria / eu te juro, te daria / se eu pudesse esse amor todo dia. / Chega perto, vem sem medo. / Chega mais, meu coração. / Vem ouvir esse segredo / escondido num choro-canção”.

Ah, se a vida tivesse mais poesia! O mundo seguramente seria mais leve. E os ventos que correm por esse mundo, mundo, vasto mundo, cortando os caminhos da gente, soprariam em nossos ouvidos outro desafio de Drummond: “Ninguém me fará calar, / gritarei sempre que se abafe um prazer, / apontarei os desanimados, / negociarei em voz baixa com os conspiradores, / transmitirei recados que não se ousa dar nem receber, / serei, no circo, o palhaço, / serei médico, faca de pão, remédio, toalha, / serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais…”

O que espero desta vida, minha gente, é poder celebrar o amor sem arrependimento e sem pudor. É poder pular a fogueira das fantasias sem medo de me queimar. Para que mais tarde não seja necessário declamar, com agravo, o poema de Nei Duclós: “Confesse que você está calado / enquanto ao lado deste quarto / os meninos criam cobras / debaixo dos colchões!”

Uma coisa eu asseguro: se eu fosse o bem-aventurado Mr. Kinsky – personagem de David Thewlis, no impecável filme Assédio – comporia a mais linda melodia que a memória afetiva propiciasse. E cada um dos acordes teria que resgatar os episódios mais importantes da vida, dando a eles uma nova possibilidade.

Já que eu dei a pista do motivo de tantas digressões, então, vamos lá: o filme em questão é “Assédio”. Com certeza, é mais uma obra-prima do mestre Bernardo Bertolucci. O certo é que só no imaginário dele caberia tanta poesia em um filme. Bertolucci construiu os maravilhosos versos desse filme-poesia tendo, como contraponto, o drama africano. Meu Deus, isto nunca terá fim? Miséria, dor e perseguições políticas impostas por ditadores são, como pano de fundo, os argumentos do filme. Revelados de forma impecável e com a marca característica de Bertolucci: a intimidade plena!

O texto da contracapa do filme diz tudo: “Quando seu marido é preso, acusado de propagar ideias subversivas aos seus alunos, a enfermeira Shandurai foge da África, um lugar à beira do caos político, e vai morar na Itália. Lá, para custear sua faculdade de medicina, ela trabalha como empregada para Mr. Kinsky, um excêntrico pianista e compositor inglês. Vivendo praticamente recluso desde a morte da esposa, o músico apaixona-se por Shandurai e passa a assediá-la com presentes e música. Sem saber que ela é casada, ele declara seu desesperado amor, jurando fazer qualquer coisa para agradá-la. Ela, então, implora que ele a ajude a libertar seu marido. Pouco a pouco, o pianista passa a se desfazer de seus objetos de arte para custear um julgamento legal. Mas, a notícia de que seu marido foi solto e está a caminho da Itália faz Shandurai repensar seus sentimentos e sentir-se dividida entre dois amores.”

Comovente. É o mínimo que podemos dizer dessa bela história. Afortunadamente, ela resgata não somente a fé no amor. Bem mais do que isso, meus amigos, a história revela o lado mais bonito que existe no ser humano: a generosidade. E quando digo generosidade, refiro-me, muito mais, àquela que é capaz de brotar da pessoa sem a obcecada contabilidade do retorno. A meu ver, aí está a genialidade de Bertolucci, à medida que consegue retirar, delicadamente, impecáveis fragmentos do cotidiano, tão escondidos nos corações.

O nosso estimado Mr. Kinsky foi além das fronteiras do amor para com Shandurai. Mesmo sabendo que ela era casada e, portanto, frustrando qualquer possibilidade de relacionamento afetivo, Mr. Kinsky foi tomado pelo amor que estava dentro dele, jorrando à vontade! E assim, ele foi capaz de amar, sem se preocupar com o retorno. Insisto: Mr. Kinsky amou, antes de tudo, a vida. Um incontido e extraordinário amor, suficiente para vazar: quer para a sua música, quer para Shandurai. Quantos conseguiriam isso? Quantos abririam mão de um amor em benefício do outro? Eis aí a beleza. Eis aí a poesia. Circunscritas no amor que o indivíduo carrega dentro dele. O mestre, Artur da Távola, conseguiu descortinar isso, quando disse que “só quem é capaz da independência e já passou pelo sofrimento necessário a tê-la, aceita as inevitáveis dependências da vida, particularmente as do amor. Quem chegou ao amor por independência, não chega a considerar certos atos na direção do ser amado que n’outro contexto seriam feitos com sacrifício”. Tem toda a razão, mestre!

O ‘estar só’ não é, necessariamente, uma manifestação desprovida de amor. Muito ao contrário! Uma criatura que é capaz de se amar, estando a sós, seguramente pode oferecer ao outro um afeto legítimo. O resto, creio, é apenas consequência. Bela e excitante, como convém.

Por tudo isso, minha gente, eu prefiro ficar com as melodias que estão esparramadas pelo universo. No fundo, elas são sábias. E me embalam nesta linda manhã de sol. Na voz da Ana Caram, todos os anjos sussurram em meus ouvidos: “Não se afobe, não / que nada é pra já / o amor não tem pressa / ele pode esperar / em silêncio, num fundo de armário / na posta restante / milênios, milênios ao ar…”

OS SONHOS DE CADA UM

Lembro que era sexta-feira, dia 9 de outubro de 1964. E para meu desespero, há mais de uma semana que eu lia aquele fatídico cartaz estampado na porta do teatro: “Sorry, sold out”. Céus… Nada poderia ser mais frustrante do que deixar de ouvir o sopro de Stan Getz em um refinado dueto com João Gilberto!

O fato é que eu trabalhava em uma padaria na “Midtown Manhattan”, nos fundos do Central Park. Ela ficava bem ali na Sétima Avenida, esquina com a West 58. Mas, convenhamos, era uma bela padaria, cuja tradição do ‘pão fresco’ tornava a rotina digna de repetição. Aliás, segundo eu soube, ela foi aberta pelo belga Alain Coumont, que decidiu sair de Bruxelas e se aventurar pelo mundo. De certo modo, eu também fazia o mesmo, meus amigos, ao sair do Ceará para Nova Iorque. No entanto, para Alain, havia a necessidade de um bom nome na porta do estabelecimento. Para tanto, ele precisou apenas se recordar do pai exclamando em casa: “moi, ce n’est pas mon pain quotidien” – “não é meu pão diário”. Assim, ele percebeu que não precisaria de nenhuma outra ideia. Bastava escrever: “Le Pain Quotidien”, “o pão do dia”, onde o passado encontra o presente e o futuro.

Contudo, a verdade é que eu tive que implorar um bocado pela minha folga semanal. Isso porque o belga era duro na queda e não aceitava improviso e nem desculpas esfarrapadas.

Ainda assim, após muito sofrimento, eu finalmente consegui a primeira parte do plano: a folga no dia seguinte. Só que havia um problema maior: o ingresso para o memorável show de João Gilberto, no “Carnegie Hall”! E a convidada daquela noite seria especial: a deliciosa voz de Astrud Gilberto. Quem pode perder isso?!

Dizem por aí que todo pobre tem o seu dia de sorte. Pode ser. Mas, no meu caso, devo reconhecer, eu tirei o primeiro prêmio na loteria da vida, meus amigos. Pois não é que o seu Alain me presenteou com um ingresso para o famigerado show?! Céus! Eu só acreditei quando vi o bendito ingresso. “Deus existe”, foi o meu desabafo!

Arrumei-me feito um príncipe, caprichando em cada detalhe. Engraxei os sapatos e peguei emprestado o terno do meu colega da padaria. Ao final, eu me sentia mais ‘garboso’ do que o prefeito da cidade. E se alguém medisse minha pressão sanguínea, por certo, iria se assustar.

Chegando ao balcão B, procurei o assento 67. Mal conseguia me sentar, tal era o êxtase. Além disso, experimentei os trinta minutos mais demorados da vida, que antecederam o início do espetáculo. “Voilà!”

Quando Astrud Gilberto começou a cantar “Corcovado”, confesso: chorei copiosamente. Senti saudades do Brasil e do meu velho Ceará. Saudades daquele adolescente que, um ano antes, havia partido sem rumo e sem prosa, em busca de algumas descobertas. Pois é. O que sei é que ao ouvir aquelas melodias, confesso, eu descobri que o mundo é bem maior do que nossas esperanças. É até maior que os nossos sonhos. Ainda bem, minha gente!

 O maravilhoso palco da exibição, o “Carnegie Hall”

João Gilberto e Stan Getz.

O CAVALEIRO E A ESPADA

Ah, meus amigos, já faz um bom tempo que não assisto a um belo filme de cavaleiros e espadas. Sim! Desses que são capazes de nos raptar por inteiro em uma história envolvente e cheia de fantasias.

Se não estou enganado, eu acredito que o último filme do gênero que assisti foi um desenho animado da Disney, numa tarde chuvosa, aninhado no sofá da sala com o meu neto, João Pedro. É bem verdade que ele ainda tinha quatro anos de idade. Céus! Lembro até que a avó dele fez ‘bolinho de chuva’ para todos nós, pois eu havia alugado o DVD “Os três Mosqueteiros”. Só que no nosso caso, o “João Bafo de Onça” era o protagonista dono das piores maldades, além de perseguir o pobre coitado do Mickey.

E como João Pedro era muito esperto, logo, logo percebeu que a Princesa Minie teria muitas dificuldades com o perverso João Bafo de Onça. É que a força do mal muitas vezes é superior às forças do bem. Paciência!

O tempo, então, caminhou mais um pouquinho. João Pedro cresceu e começou a ‘soletrar o mundo’ do seu jeitinho. Hoje, no auge dos seus quase nove anos, João só pensa em Minecraft, no tio parceiro e nos mergulhos na praia dos seus sonhos: Campeche.

A verdade é que o tempo passou, também, para nós todos aqui de casa. Gabriel, nosso filho, começou a trabalhar e faz planos promissores para o seu futuro. Ontem mesmo, nós estávamos conversando na cozinha, saboreando o café da noite. Então, eu o provoquei perguntando se não tinha vontade de se especializar em multimídia, áudio e vídeo, fora do país. Como ele fala impecavelmente a língua inglesa, sugeri que fosse para Los Angeles, o maior centro tecnológico de áudio e vídeo.

Ainda que isso já tivesse passado pela cabeça dele, o certo é que vindo do pai e da mãe, a ideia adquire contornos diferentes. Quem sabe, suas emoções se sintam ‘arranhadas’ pela nossa ideia?! É que os jovens, de certo modo, sempre preferem ser os autores das ideias. Pior ainda: vai que ele se sinta ‘empurrado’ para fora da casa pelos próprios pais…

Por isso, nós tivemos o cuidado de oferecer a ele a possibilidade de o acompanharmos nos dois primeiros meses da viagem, já que para nós isso seria prazeroso, com o sentimento de férias.

O que sei dizer é que a conversa de ontem poderá, de fato, ‘movimentar’ sentimentos e planos para a vida adulta do Gabriel. Acho até que ele ‘gostou’ da ideia e, no final da noite, sentou-se para elencar algumas etapas.

Hoje, meus amigos, ao acordar e partir para a minha caminhada matinal, eu me dei conta de que o papel dos pais, no fundo, é tão-somente ‘suscitar’ movimentos internos nos seus filhos. O resto, bem, o resto é com eles, não acham?! A gente procura ficar ao lado, na torcida para que tudo transcorra da melhor forma. Frio na barriga? Sim! Todos nós temos. Mas é preciso confiar nas forças naturais que estão dentro de cada um de nós. E acreditar que os espíritos celestiais estarão à postos, prontos para qualquer socorro na empreitada…

Lembro até que Gabriel, quando tinha a idade do seu sobrinho, João Pedro, tinha sempre guardado na manga a frase do seu herói, Buzz Lightyear: “Ao infinito e além!”

O HOMEM DA CAPA PRETA

É bem verdade que nessa época eu era ainda um molecote, com pouco mais de dez anos. No entanto, como sempre fui uma criança observadora, confesso que eu achava muito estranho as ‘reuniões’ que ocorriam na casa do Seu Nacib. Sim! Até porque, como diziam, a história do ‘velho turco’ era cercada de ‘muitos mistérios’. Segundo os comentários, já naquela época, o armarinho que ele possuía na rua Sampaio Ferraz era de ‘fachada’. Algo para encobrir e justificar o dinheiro abundante. Mas, quem pode garantir?!

Também é verdade que naquele Estácio dos anos 1960 tudo acontecia de modo sorrateiro, sem deixar vestígios. Ainda assim, há sempre um momento de descuido, por mais que a pessoa seja precavida. E no caso do Seu Nacib, talvez tenha sido por conta da festejada visita do famoso Tenório Cavalcanti. É que o controvertido deputado chegou com pompas e alardes. Fazendo questão, inclusive, de não ‘esconder’ a presença da “Lurdinha”, sua fiel companheira: a metralhadora!

Aliás, é bom lembrar que Tenório Cavalcanti foi candidato ao cargo de governador do Estado da Guanabara, em 1960, pelo Partido Social Trabalhista. Entretanto, ele perdeu as eleições para Carlos Lacerda. Logo a seguir, em 1962, ele se candidatou a governador do Estado do Rio de Janeiro, perdendo dessa vez para Badger da Silveira. Pois é. Ao que tudo indica, estes fatos, meus amigos, somado às pressões das bases políticas de Caxias, seu reduto político, diminuíram bastante o poder de Tenório, que lentamente cairia no esquecimento.

Antes disso, porém, ele seria protagonista de um dos episódios mais tensos da história política brasileira. Reza a lenda que, nessa ocasião, ainda no mandato de deputado federal, Tenório discursava na Câmara dos Deputados. E no discurso, ele acusava o presidente do Banco do Brasil de desvio de verbas. Mas no plenário, um famoso deputado baiano defendera o conterrâneo, respondendo que “Vossa Excelência pode dizer isso e mais coisas, mas na verdade o que Vossa Excelência é mesmo é um protetor do jogo e do lenocínio, porque é um ladrão.”

Tenório Cavalcanti, então, sacou o seu revólver e berrou: “Vai morrer agora mesmo!”. Alguns deputados correram para tentar impedir o assassinato, enquanto outros fugiram do plenário. Segundo as más línguas, o deputado baiano, tremendo de medo, teve uma incontinência urinária. Mesmo assim, gritava: “Atira. Atira!” Tenório, por sua vez, resolveu não atirar. Rindo da situação em que o deputado se encontrava, recolheu o revólver, dizendo que “só matava homem”. Vai saber?!

Mas o que eu queria dizer, de fato, era a respeito da reunião na casa do Seu Nacib. Porquanto eu acabei sendo testemunha ocular de um importante episódio. Deixem-me contar. Eu estava na esquina da Zamenhof com a Quintino do Vale, bem em frente à casa do Seu Nacib. Em um dado momento, ele foi ao portão e me chamou: “Chau, dê um pulinho na vendinha do seu Manoel e pegue uma garrafa de “Velho Barreiro” e peça para pôr na minha conta!” Fui e voltei em dois toques. Seu Nacib, então, disse para entrar e tomar um refresco de groselha. Foi quando eu vislumbrei um objeto preto, grande, encostado ao lado da estante da sala. Curioso, eu fiquei ali na sala tomando o refresco bem devagar para apreciar aquele objeto. Mas, criança é bicho danado. Não demorou muito e eu já estava com a ‘dita cuja’ nas mãos, observando cada detalhe daquela engenhosa ferramenta. Foi quando a porta se abriu e o deputado Tenório Cavalcanti entrou para ir ao banheiro, antes do almoço. Ao me ver com a “Lurdinha” nas mãos, ele calmamente pegou a arma e me perguntou: “Você já viu uma igual a essa?” Eu disse que não, quase gaguejando. Ele, então, segurando-me pelo braço, levou-me e até o jardim interno da casa do Seu Nacib. Lá chegando, empunhou a “Lurdinha” e deu uma rajada de tiros para o alto. Céus! Eu quase morri de susto com aquele barulho…

De certo modo, devo confessar: eu acabei tendo o mesmo ‘probleminha’ que o deputado baiano teve no plenário da Câmara… Paciência. Fazer o quê?!

Imagem: Tenório Cavalcanti, o “Homem da Capa Preta”.